sábado, 28 de abril de 2018

"Por que você não mata um branco?"

Prólogo: "Licença, você ou alguém da sua família é indígena?"
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Era mais um momento de desabafo em mesa de bar. Relacionamento aberto e à distância pra cá, crush cuzão pra lá, saudade de casa, Caetano Veloso mozão eterno, São Carlos racista, dentre tantas pautas usuais. No meio do desabafo, após algumas cervejas, comento que tem sido difícil olhar para pessoas brancas sem um tanto de desconfiança, sem esperar uma pérola racista (ou xenofóbica com norrrdeste pra cá, praia pra lá, guerreiro universitário, batalhador retirante e todo o blábláblá meritocrático e hipócrita da classe média universitária paulista) e desabafo sobre um ódio quase instantâneo associando situações desconfortáveis a uma série de pessoas brancas com quem entrei em contato aqui em São Carlos. É quando a pessoa que ouve os desabafos, um homem branco cis-hetero e amigo meu, diga-se de passagem, sugere:
"Já que você tem tanto ódio, por que você não mata um branco?"
Parece piada de filme de comédia tipo B mesclando o sadismo de Tarantino e o humor ácido de John Waters numa mesma cena, mas foi real. Eu poderia ter ido direto ao ponto de que o meu ódio não é às pessoas brancas, mas a um sistema que lhes privilegia que, cotidianamente, chamo de branquitude. Poderia ter encurtado conversa, mas estou com uma tendência a me divertir com esses absurdos e levei o sadismo adiante. Apenas respondi: "Porque vocês se reproduzem como mosquito, mata um, vem mil. Qual o ponto em matar um branco?" Foi quando ele alegou que o que eu sentia não era ódio e tentou justificar com algum argumento acadêmico inacessível a mim. Até que cheguei no ponto do ódio à branquitude e não às pessoas brancas, mas achei curioso tomar a morte literal como ponto de partida para reflexões. Perguntei: "supondo que eu matasse um branco, qual o impacto disso no racismo estrutural?" "Quais as chances de eu escapar desse crime e não ser jogado numa cela junto a tantos outros pretos?" "Quantos psicopatas negros você conhece? Porque, veja bem, branco que mata preto é psicopata, o contrário acontecendo, é criminoso mesmo". Falei, então, que há várias formas de matar e que se fosse para satisfazer algum desejo sádico, que seja o de ocupar um lugar num curso de doutorado da décima melhor universidade do Brasil. Uma das formas de matar a branquitude é mostrar que nós, pretos, somos capazes de falar de igual pra igual porque atingimos um lugar que foi seu historicamente sem que você precisasse fazer esforço algum. Matar a branquitude passa também por mostrar que é possível falar sobre antropologia com o sotaque sergipano (ou baiano, cearense, paraense, etc...) porque estamos cansados de ser objetos. Agora somos sujeitos etnografando o cotidiano de vocês. O que para vocês é antropologia reversa, para nós, é apenas antropologia porque do nosso ponto de vista, não revertemos nada, apenas ocupamos um espaço que sempre foi e será nosso por direito.
Sobre os conselhos dados a um preto num momento de desabafo, tenho algumas sugestões: que tal pegar o seu privilégio e fazer algo efetivo? Tem alguns exemplos bastante legais nesse sentido, como o caso de Gregório Duvivier abraçado em seu pé de maconha. Outro, um caso mais próximo, de uma amiga que foi realizar o trabalho de campo num lugar pesado, numa rota de tráfico onde ela está sujeita, junto com os moradores de lá, aos enquadros da polícia. O que esses dois casos têm em comum é de pessoas brancas que entenderam que seus corpos são blindados e tocam tarefas que jamais poderiam ser tocadas por nós, pretos, porque sabemos que talvez a gente não fique vivo para contar as histórias sobre os saldos dessas distintas (e bonitas) lutas.
Aproveitando o ensejo de pessoas pretas silenciadas pela violência seletiva: "Marielle presente!"
Por fim, agradeço o seu conselho porque acho que foi genuinamente bem intencionado. Mas talvez tenhamos concepções um tanto distintas sobre romper paradigmas. Vocês podem queimar índio em praça pública e isso ser considerado "brincadeira de adolescente". Alguns anos mais tarde, vocês ainda vão continuar ocupando os espaços de poder. Ainda assim, acho que aprendi alguma coisa com vocês. Fazendo parte de um departamento em que 100% dos professores são brancos e quando vem de um dos docentes do programa que "Por motivos óbvios, não temos professores negros aqui", a gente, preto e nordestino que teve pouquíssimas aulas com pretos e/ou nordestinos nas nossas próprias universidades no nordeste, aprende a ser a nossa própria referência. Não me leve a mal. Matar um branco está fora de cogitação, sobretudo levando em conta os meus princípios éticos de respeito à vida. Matar a branquitude, fazendo com que os brancos repensem a sua hegemonia histórica me motiva muito mais.
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Epílogo: Imagina a situação de estar do lado de fora do condomínio onde você mora e pedir pra alguém de dentro desse mesmo condomínio abrir a garagem (isso encurta alguns metros até a entrada do meu prédio) e essa pessoa se recusar porque você é uma pessoa negra - ainda que, nessa ocasião, acompanhado pela amiga branca - a pé e, portanto, "parece suspeita". É a segunda vez que "pareço suspeito" nesta cidade e, acho que estou começando a rir do quão ridículo o racismo estrutural pode ser. A título de cusiosidade, após ter entrado pela portaria comum, eu e minha amiga fomos explicar que moramos no prédio e a justificativa foi a de que "coincidentemente" o portão não queria abrir, abrindo apenas quando eu me afastei. Deve ter sindo um "mal entendido". Se tá difícil de entender que preto pode morar num condomínio classe média de um bairro antigo da cidade, imagina o que essas pessoas devem pensar de um preto querer ser "doutor"...
Sigamos,

Um comentário:

Didi disse...

Faz tempo que eu não vinha aqui e que surpresa encontrar esse texto maravilhoso.
Tem um ponto principal que você coloca aí que eu tenho pensado muito nos últimos tempos: mais que pensar em fortalecer as pessoas não heterossexuais ou não brancas é fundamental questionar a hetero(cis)normatividade bem como a branquitude, que você coloca em exemplos tão bons nesse texto a partir de uma experiência pessoal.
Eu também me lembrei de Moreno, criador do psicodrama. Nessa terapia (e em exercícios com grupos também) você pode se colocar em um lugar que não é seu. Dando um exemplo tosco, você está em conflito com seu pai e de repente pode representar o papel dele e se imaginar na posição dele. Enfim, fiquei pensando se o mundo por vezes não impõe um estranho psicodrama em um papel que não é nosso (homem hetero, branco) em termos de como vemos as coisas (não em termos de espaços de poder, porque este ainda não ocupamos, de fato). Tenho mudado essa lente e tentar ver a partir do meu próprio lugar e isso tem sido surpreendente e ao mesmo tempo assustador, porém um susto necessário.
Enfim, sempre é bom ver seus textos. E te agradeço por proporcionar essa reflexão. :*